As toxinas produzidas por animais venenosos contêm compostos
que podem ser aproveitados no desenvolvimento de uma ampla gama de fármacos e
inseticidas. Mas, para que isso seja possível, é preciso identificar compostos
de interesse, desvendar suas estruturas moleculares, realizar a síntese das
moléculas em laboratório e, por fim, realizar testes clínicos.
Durante quatro anos, um grupo de pesquisadores se dedicou à
identificação e elucidação da estrutura molecular de cerca de 200 peptídeos e
proteínas, além de 140 pequenas moléculas encontradas no veneno de diferentes
grupos de aranhas, vespas e outros artrópodes venenosos do Brasil.
Realizado no âmbito do programa BIOTA-FAPESP, o Projeto
Temático "Procura de compostos líderes para o desenvolvimento racional de
novos fármacos e pesticidas a partir da bioprospecção da fauna de artrópodes
brasileiros", financiado pela FAPESP, foi coordenado por Mario Sergio
Palma, professor do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), em Rio Claro (SP).
De acordo com Palma, além de prospectar novas moléculas, os
cientistas envolvidos com o projeto aprofundaram estudos dos mecanismos de ação
das toxinas e ganharam experiência com novas técnicas de síntese de peptídeos e
de pequenas moléculas.
“Além dos resultados de pesquisa extremamente positivos, o
projeto possibilitou a montagem de uma unidade de síntese de peptídeos,
produziu 10 teses de doutorado, 13 dissertações de mestrado e teve a
participação de seis pós-doutorandos e 14 bolsistas de iniciação científica”,
disse à Agência FAPESP.
Segundo Palma, que é químico de formação, o trabalhou
realizado pelo grupo, por ser essencialmente multidisciplinar, exigiu o
constante estabelecimento de parcerias com pesquisadores de áreas como
fisiologia e farmacologia. Embora envolvesse apenas dois grupos permanentes -
da Unesp em Rio Claro e Rio Preto -, com quatro pesquisadores seniores, o grupo
criou tentáculos em diversas áreas e instituições.
“Toda a infraestrutura gerada pelo Temático - que permitiu o
aprimoramento de técnicas de análise de estrutura e espectrometria de massas -
gerou a consolidação dos nossos laboratórios. Durante os quatro anos do
projeto, pesquisadores de 63 instituições diferentes utilizaram nossas
instalações, multiplicando as publicações relacionadas ao nosso trabalho”,
afirmou.
O Projeto Temático teve dois focos principais: as
macromoléculas de biopeptídeos e proteínas - que têm interesse para aplicações
na indústria química e farmacêutica - e as pequenas moléculas. A equipe se
dividiu entre os dois focos e trabalhou com artrópodes venenosos de diferentes
grupos, incluindo aranhas, vespas, abelhas e formigas.
“Fomos procurar, fundamentalmente, drogas que têm ação
neurotóxica. Quando se compreende a estrutura e a ação dessas substâncias, com
uma pequena modificação é possível fazer com que elas tenham ação
neuroprotetora”, explicou Palma.
No decorrer da evolução, a estrutura das toxinas evoluiu
para se adaptar à estrutura das células dos animais que deveriam ser atacados,
ou dos quais era preciso se defender. Assim, em geral, para compreender a ação
da toxina, é preciso não apenas desvendar sua composição, mas entender todo o
contexto no qual ela atua.
“Trabalhamos, por exemplo, com dois tipos de aranhas: as
construtoras de teias aéreas e as errantes - que vivem no solo e caçam. A
composição dos venenos de cada uma delas é muito diferente, já que são
utilizados com finalidades e estratégias distintas”, disse Palma.
As toxinas das aranhas que vivem longe do chão têm poucas
proteínas e peptídeos, mas são cheias de pequenas moléculas orgânicas muito
parecidas com as toxinas das plantas. As aranhas do gênero Nephila, que fazem
grandes teias amareladas e douradas, foram o primeiro alvo dos estudos.
Aranha do gênero Nephila |
“As gotículas viscosas na teia das Nephila servem para prender
pequenos insetos e também para lubrificar e favorecer a flexibilidade da teia.
São compostas de um conjunto de vesículas feitas de lipídios por fora e
preenchidas com toxinas”, disse.
Os cientistas estudaram como esses lipídios reagem com o
exoesqueleto dos insetos presos pelo visgo, removendo a cera que o protege e
colocando-o em contato com as neurotoxinas, paralisando o animal.
“Essas substâncias são inseticidas poderosíssimos.
Encontramos ali moléculas interessantes, que são alcalóides retirados pelas
aranhas de suas presas, que por sua vez os sequestram dos alcalóides das
plantas. Uma vez que a aranha obtém o alcalóide, ela introduz modificações em
sua estrutura, produzindo as neurotoxinas”, explicou Palma.
Essas aranhas só consomem proteína fresca, por isso não
matam as presas. É preciso injetar nos insetos um veneno paralisante,
guardando-o para os momentos de fome. Além disso, a aranha produz toxinas
diferentes de acordo com o período do ano, sempre de forma coerente com o tipo
de presa disponível.
“Observamos que as toxinas usadas para provocar a paralisia
produzem muitas estruturas químicas diferentes. Nesse grupo de aranhas,
elucidamos a estrutura de 106 moléculas”, contou o coordenador do projeto.
Três das toxinas descobertas, que causam paralisia
transitória, mostraram-se especialmente interessantes quando testadas no
sistema nervoso de ratos e camundongos.
“Usamos modelos de epilepsia e descobrimos que essas três
drogas têm efeitos antiepiléticos promissores. Um trabalho sobre isso foi
publicado na revista Brain Research”, disse Palma.
O modelo se mostrou tão promissor que o grupo estabeleceu
uma parceria com o professor Jaderson da Costa, da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), para testá-lo em modelos in vitro de
tecido de cérebros humanos com epilepsia refratária.
Doenças neurodegenerativas
Os aspectos evolucionários convergentes entre plantas e
aranhas também foram estudados nas chamadas aranhas coloniais, como a Parawixia
bistriata, que fazem teias em plantas do gênero Banisteriopsis. Diferentemente
das Nephila, que têm teias perenes, essas outras produzem as teias e as
destroem diariamente.
Aranha do gênero Parawixia bistriata |
“Encontramos um grande volume de alcalóides no veneno dessas
aranhas e passamos a estudar o mecanismo de ação dessas moléculas, que provocam
convulsões quando aplicadas em camundongos, ratos e coelhos. Descobrimos que o
mecanismo envolve os canais de cálcio dos neurônios”, contou Palma.
Em doenças como Parkinson e Alzheimer, os neurônios
degenerados têm um defeito morfológico que mantêm seus canais de cálcio abertos
permanentemente, provocando uma metilação ininterrupta que causa tremores.
“O envenenamento produzido pela aranha tem um efeito muito
parecido. Mapeamos o cérebro dos animais intoxicados e, com um marcador,
localizamos a região onde a toxina se acumula. Verificamos que ela produz a
morte do animal por excesso de íons cálcio”, afirmou Palma.
Entre o grupo das aranhas que vivem no solo, como as
armadeiras, o grupo da Unesp isolou uma substância com estrutura química pouco
comum na natureza. Trata-se de um composto não peptídico, não protéico, de
baixa massa molecular e que aparentemente não tem toxicidade, mas atua sobre os
canais iônicos.
“Testamos a substância no laboratório da PUC-RS, em ratos, e
descobrimos que se trata de uma droga antiepilética ainda mais potente que a
anterior. Estamos aguardando a autorização para realizar estudos em modelos
humanos”, disse.
Os pesquisadores descobriram também, em vespas, uma
neurotoxina capaz de paralisar e matar alguns insetos, ao agir no receptor de
glutamato - uma classe de moléculas que recebem o principal neurotransmissor
que estimula o cérebro.
“Há várias subfamílias e subtipos de vespas. Em um deles,
descobrimos essa droga, que existe de forma modificada no sistema nervoso de
mamíferos. Esse composto se mostrou um potente inibidor de crises epiléticas em
modelos animais in vitro. Trabalhamos agora no processo de síntese dessa
substância e estamos aguardando autorização para administrá-la em modelos
animais in vivo”, disse Palma.
No veneno das vespas da espécie Polybia paulista, conhecidas
como “paulistinhas”, o grupo de cientistas encontrou uma substância do grupo
fenilmetilamina, semelhante a drogas utilizadas para controlar o apetite.
“A substância é um isômero estrutural de certas anfetaminas
usadas para o controle do apetite e proibidas no Brasil. É parecida também com
as drogas ilegais usadas em raves”, disse Palma.
No veneno de abelhas, os cientistas da Unesp descobriram
grandes moléculas com notável reatividade a anticorpos da imunoglobulina.
Segundo Palma, nunca se conseguiu produzir um soro para veneno de abelhas, pois
o mecanismo de ação do veneno era desconhecido.
“Elucidamos a composição das proteínas do veneno e conseguimos
entender todas as etapas do processo de envenenamento. A partir daí, fizemos
uma parceria com a divisão de soros do Instituto Butantan e com o grupo de
Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e produzimos o soro. Temos agora a
primeira patente de soro de veneno de abelha do mundo, que já foi outorgada.
Estamos transferindo o know-how para a divisão de produção de soro do Butantan
para planejar a produção em escala”, disse.
Na vertente do projeto voltada aos peptídeos, duas
substâncias isoladas a partir de venenos de vespas tiveram destaque especial:
peptídeos antibióticos e uma nova família de peptídeos muito pouco conhecida
até agora, com ação potente em células pancreáticas. O trabalho foi feito em
parceria com o professor Everardo Magalhães Carneiro, da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), especialista em diabetes.
“Pode ser um modelo interessante para ajudar em certos casos
de diabetes que são provocados pelo fato de a glândula produtora de insulina
não conseguir secretar a substância. Talvez esses peptídeos sejam adjuvantes
interessantes para auxiliar a liberação natural de insulina”, afirmou Palma.